Especialistas apontam barreiras e caminhos para garantir a saúde e os direitos das trabalhadoras durante e pós gestação.
A mulher, gestante e puérpera, ainda é um desafio no mundo do trabalho. Muitas mulheres enfrentam riscos à saúde, especialmente em ambientes insalubres, e ainda sofrem com a perda de espaço profissional por causa da maternidade. O tema foi pauta do I Seminário sobre Proteção da Maternidade nos Ambientes de Trabalho do Setor Saúde, ocorrido na Fundacentro. Coordenado pela tecnologista Soraya Wingester Vasconcelos, o evento traz informações e reflexões importantes sobre como unir saúde, trabalho e maternidade de forma mais justa para todas.
Na abertura, o presidente da Fundacentro, Pedro Tourinho, destaca a importância de discutir a maternidade no contexto laboral, especialmente no setor da saúde. Ele ressalta que a profissão de enfermagem é uma das mais expressivas no país, envolvendo milhões de trabalhadores, a maioria mulheres e uma grande parcela em idade reprodutiva.
“Falar sobre os desafios da gestação e da maternidade nos ambientes de trabalho da saúde não é tratar de um tema periférico, mas de uma realidade que impacta milhões de mulheres e famílias no Brasil”, afirma.
Ele relembra o período da primeira gestação de sua esposa, médica e colega de plantão, que trabalhou até a 39ª semana de gravidez. “Na época, vivi essa experiência de forma empírica, acompanhando as dificuldades e preocupações de perto. Agora, temos a oportunidade de abordar essas questões de forma estruturada e contribuir para a consolidação de um campo de conhecimento fundamental. Quando se nomeia como primeiro seminário, é porque sabemos que outros virão. Estamos abrindo espaço para um debate necessário e contínuo”, completa.
Com base em dados demográficos recentes, a tecnologista da Fundacentro, Soraya Vasconcelos, chama atenção para a queda da fecundidade no Brasil e a mudança no perfil reprodutivo das mulheres. “Em 2023, 39% das mulheres que deram à luz tinham mais de 30 anos. Há 20 anos, esse percentual era de apenas 23,9%”, explica em sua palestra.
De acordo com ela, essa mudança está diretamente relacionada ao maior acesso à educação e aos métodos contraceptivos, influenciando, assim, as decisões sobre ter ou não filhos. “As condições do trabalho interferem diretamente no desejo e na possibilidade de ter filhos”, afirma.
Peso da força de trabalho feminina no setor saúde
A tecnologista comenta que o setor da saúde é majoritariamente feminino. Em 2024, o Brasil contava com mais de 3,2 milhões de profissionais da saúde, sendo 75,2% mulheres, a maioria delas da área de enfermagem. Dessas, 74,11% estavam em idade reprodutiva, especialmente entre 35 e 44 anos.
“Esses números mostram que a maternidade no trabalho da saúde não é um tema marginal, mas uma realidade que atravessa milhões de vidas e famílias. É urgente que isso seja tratado como uma questão estrutural”, enfatiza. Ela também menciona que mais de 82% dessas profissionais atuam no Sistema Único de Saúde (SUS), o que reforça o papel do setor público como um importante empregador de mulheres nesse campo.
A maternidade como direito humano fundamental
Em sua apresentação, Soraya defende a maternidade como um direito humano essencial e inegociável, respaldado por documentos internacionais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e, no Brasil, pela Constituição Federal.
“O artigo 6º da Constituição garante a proteção à maternidade como um direito social fundamental. Isso deve embasar outras garantias, como a licença-maternidade, a segurança no emprego, a proteção à saúde no trabalho e políticas de conciliação entre maternidade e carreira”, afirma.
Ela reforça ainda que essas garantias estão previstas em convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), como a Convenção 183, que trata da proteção à maternidade, e a Recomendação 191, que prevê medidas específicas em ambientes de risco para gestantes.
Exposição a riscos e impactos à saúde
Os dados apresentados por Soraya, obtidos em sua pesquisa com 488trabalhadoras da saúde, revelam um quadro preocupante sobre a exposição a riscos e a falta de proteção durante a gestação. Os riscos mais percebidos foram os biológicos e de esforço físico, com índices próximos a 100%, seguidos por riscos psicossociais, químicos e predisponentes a acidentes. A percepção desses riscos aumentava com a idade e o tempo de trabalho.
A maior parte das trabalhadoras entrevistadas, cerca de 93%, tinha entre 32 e 45 anos, representando quase a totalidade da amostra. “Em termos de raça/cor, 68% se autodeclararam negras, sendo que, dentro desse grupo, a maioria era parda. Lembrando que a população negra inclui tanto pessoas pretas quanto pardas. Quanto à categoria profissional, 81% pertenciam à equipe de enfermagem, enquanto 18% eram médicas”, informa.
No que se refere ao tipo de vínculo empregatício, mais de 88% das participantes eram trabalhadoras contratadas sob o regime da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, com vínculo empregatício. Apenas 9% eram servidoras públicas estatutárias. Em relação aos setores de atuação, a maioria atuava em ambulatórios e unidades de terapia intensiva – UTIs. Já os setores de oncologia e urgência corresponderam, cada um, a 11%.
A tecnologista informa ainda que o modelo de jornada mais frequente era o de plantões de 12 horas, especialmente os diurnos. Também foram relatadas jornadas diurnas de até 8 horas, com destaque para o turno de 6 horas. Sobre a experiência com a maternidade, 71,1% das participantes já haviam engravidado ou estavam grávidas no momento da pesquisa. Por outro lado, 29% nunca haviam engravidado. Entre essas mulheres, 35,5% afirmaram não desejar ter filhos e 22% ainda tinham dúvidas em relação à maternidade.
Apesar disso, apenas 52% das profissionais grávidas receberam orientações sobre cuidados no ambiente de trabalho, mesmo que a maioria tenha sido questionada sobre sua ocupação pelos médicos. “Isso mostra uma falha grave na conexão entre o acompanhamento obstétrico e a proteção ocupacional. Só 4% das gestantes que receberam orientação quanto aos riscos químicos e foram orientadas a conversarem com seus empregadores ou setores de segurança no trabalho”, alerta.
A invisibilidade da gravidez e o assédio moral
Um dos aspectos mais preocupantes abordados por Vasconcelos foi o da chamada “gravidez invisível”. Muitas trabalhadoras evitam revelar que estão grávidas por medo de retaliações, julgamentos ou restrições de carreira.
“Esse silêncio tem um custo. A mulher grávida pode passar por situações de constrangimento emocional e psicológico, o que transforma o ambiente de trabalho em um espaço de sofrimento. O assédio moral na gestação, ainda que pouco identificado nos dados, está presente nas relações interpessoais e na gestão”, explica.
Os relatos colhidos na pesquisa da tecnologista reforçam essa percepção. Em alguns casos, mesmo com recomendações médicas, gestantes seguiram trabalhando em setores de alto risco. Em outros, a gestão negou a possibilidade de realocação, naturalizando a exposição.
Agravos à saúde
Ansiedade, cansaço extremo, sangramentos, infecções urinárias e ginecológicas, além de depressão e riscos gestacionais severos como pré-eclâmpsia e hipertensão foram agravos relatados com frequência. Contudo, a percepção sobre a ligação entre esses agravos e o trabalho ainda é baixa, principalmente entre médicas.
“Muitas profissionais não conseguem estabelecer o nexo entre suas condições de trabalho e os problemas de saúde que enfrentam durante a gravidez. Isso revela uma lacuna de conhecimento e de reconhecimento institucional”, frisa.
Soraya também aponta que o desconhecimento sobre riscos físicos, como a radiação, pode tanto gerar medos infundados quanto uma perigosa negligência, devido à falta de protocolos claros de proteção.
Convite à mudança
“A gravidez não pode ser tratada como um problema individual da trabalhadora. É uma questão coletiva, que exige políticas públicas, protocolos institucionais e sensibilização das equipes gestoras”, defende.
Ela reforça que a maternidade e o trabalho não são realidades opostas, mas precisam ser conciliadas com dignidade, segurança e respeito. “É preciso garantir que o trabalho seja uma fonte de realização e não de sofrimento. E para isso, é essencial tornar visível aquilo que hoje ainda é silenciado: a experiência real das mulheres que geram, amamentam e cuidam, enquanto trabalham”, exalta.
Debates e comentários
Elizabeth Costa Dias, professora da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e Ildeberto Muniz de Almeida, professor da Universidade Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp, ressaltam a importância de transformar o conhecimento científico em retorno concreto para a sociedade, especialmente no que diz respeito à proteção das gestantes e lactantes no mundo do trabalho.
Leonardo Osório Mendonça, do Ministério Público do Trabalho – MPT, reconhece que a legislação brasileira já possui avanços, mas que a ratificação da convenção seria estratégica para garantir proteção universal, especialmente para trabalhadoras sem vínculo formal, como autônomas e prestadoras de serviço. “Se essas mulheres precisarem se afastar do trabalho, simplesmente deixam de ter renda. É uma situação de extrema vulnerabilidade”, afirma. Completa que apenas cerca de 44 países ratificaram até agora a convenção 183 da OIT, e que essa adesão colocaria o Brasil em sintonia com os compromissos internacionais da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas – ONU.
Para Andrea Silveira, da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, a invisibilidade só será enfrentada com mudanças culturais profundas e políticas públicas efetivas, como creches acessíveis, licenças parentais igualitárias e divisão real do cuidado entre homens e mulheres. “Os dados apresentados por Soraya são fundamentais não apenas para ações de prevenção, mas para um diagnóstico mais amplo sobre como a sociedade brasileira trata suas trabalhadoras, especialmente as que são mães”.
Fernando Donato, da Universidade Federal da Bahia – UFBA destaca que a questão da maternidade é central para o campo da saúde coletiva e revela contradições profundas entre capital e trabalho. Para ele, o sistema capitalista depende da reprodução da força de trabalho, mas delega essa responsabilidade quase exclusivamente às mulheres, como se fosse um problema privado ou familiar. “Existe uma urgência de resgatar a centralidade desse tema, especialmente em um contexto de queda da fecundidade e envelhecimento populacional, como já ocorre em países europeus. Nessa perspectiva, é necessário que o Estado valorize a gestação e a infância como bens públicos essenciais”.
A especialista Luciana Viana, da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – Ebserh, apresenta um panorama detalhado sobre a força de trabalho feminina nos 45 hospitais universitários federais sob gestão da Ebserh, que atualmente conta com cerca de 70 mil trabalhadores, sendo a maioria mulheres (71%) e com vínculo celetista. Ela destaca que, desde 2013, mais de 10 mil licenças-maternidade foram concedidas, refletindo um comportamento demográfico consistente com a média nacional de um a dois filhos por mulher. No entanto, chama atenção para a queda gradual no número de licenças, que passaram de 9% em 2014 para 5,8% em 2024, além do aumento na idade média das mulheres que usufruem do benefício, que subiu de 33 para 36 anos.
Já Flavia Nogueira, da Coordenação de Saúde e Segurança do Trabalhador da Saúde – Cossets/MS, critica a escassez de pesquisas sobre maternidade e saúde da trabalhadora, apontando que esse apagamento é reflexo de uma sociedade patriarcal e misógina. Também menciona a baixa representatividade feminina em instâncias decisórias, como nas comissões que elaboram normas regulamentadoras.
Participação do público
A enfermeira Elaine Neves, que estava presente no evento, contribui destacando que o mundo do trabalho impacta profundamente a saúde física e mental das mulheres, especialmente as negras e periféricas, que formam a base da força de trabalho na saúde, como na enfermagem.
Ela questiona a invisibilização da relação entre trabalho e adoecimento feminino e aponta como muitas trabalhadoras têm seus direitos à maternidade violados ou descontinuados, o que as empurra para o trabalho informal ou o empreendedorismo precário. Ressalta ainda o uso do discurso da igualdade para opor mulheres cis a mulheres trans em disputas de direitos, destacando a urgência de enfrentar o modelo que trata trabalhadoras como descartáveis.
Finaliza informando sobre a Cartilha disponível on-line sobre os direitos das mães trabalhadoras, produzida pela Central Única dos Trabalhadores – CUT e pelo escritório LBS Advogadas e Advogados.
Texto: Débora Maria Santos
Imagem: Criada por IA
Fonte: https://www.gov.br/fundacentro/pt-br/comunicacao/noticias/noticias/2025/maio/seminario-em-sao-paulo-discute-desafios-para-proteger-gestantes-no-ambiente-de-trabalho